Ola a todos, sejam bem vindos ao Armazém de Contos. Um depósito de ideias malucas e que precisam ser postas no papel... digo no computador. Aqui irei colocar contos de ficção cientifica, fantasia, terror e mistério, os assuntos dos quais gosto de escrever. Para facilitar a identificação cada conto terá um ícone classificando ele em um ou mais desses gêneros (ver imagem abaixo), assim quem não gostar de um determinado tema pode pular sem estresse.

Legenda dos Assuntos

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

A Tristeza Roubada


Imagem por panagiotios


Vampiros são, provavelmente, uma das lendas mais difundidas ao redor do mundo. Praticamente toda a cultura tem uma história sobre uma criatura que suga sua energia e vive para sempre. Mas nenhuma é tão terrível quando a do sorgsmord.
Reza a lenda que em algumas partes do mundo, particularmente nos cantos frios da Noruega e outras regiões onde outrora reinavam os Deuses Nórdicos, existia uma criatura chamada sorgsmord, alguns afirmam que eles ainda existem. Sorgsmord literalmente quer dizer "Matador de Tristeza", o que não era exatamente um nome que inspirasse medo, porém as pessoas dessas regiões ficavam muito incomodadas quando você falava que elas tinham sido atacadas pelo sorgsmord, só porque estavam particularmente alegres na ocasião. Quem fizesse isso frequentemente iria ouvir coisas como: "você não sabe o que está dizendo", "minha felicidade é só minha", "eu tenho motivos pra estar feliz!", etc. Sempre terminando com algum tipo de palavrão ou um advertência pra "não brincar com coisa séria".
O que a maioria não sabe, incluindo os que levam o assunto a sério, é que sorgsmord são reais, muito reais e horríveis, eles destroem você com a mais terrível das armas... a alegria. E Tyra estava por descobri isso do pior jeito.

Era uma manhã cinzenta, como tantas outras, mas para Tyra essa manhã estava muito mais cinza. Ela tem 19 anos, um linda jovem de cabelos loiros quase ruivos e minusculas sardas no nariz e bochechas. Seus olhos, de um azul claro quase lilás, estavam marejados neste dia, uma profunda tristeza tomava seu coração, uma tristeza insuportável, como se um tijolo estivesse apertando seu peito, um tijolo que tinha o peso do mundo.
Ela estava no cemitério, com mais umas 20 pessoas ao redor, segurando seu braço uma tia que não via há anos. Na terra, em um buraco escuro e profundo, três caixões terminavam de ser baixados, um deles pequeno, o mais terrível tipo de caixão para se ver, o caixão que lhe diz que uma vida que apenas havia começado, já encontrara seu fim. Um acidente arrancara de Tyra seus pais e seu irmãozinho, tirando dela tudo e deixando apenas a tristeza. O motorista do caminhão que estava bêbado quando os atingiu, já havia sido preso, e passaria muito tempo preso, não havia mais nada a se fazer, nenhuma justiça a buscar, apenas a inconsolável certeza de que ela estava só e de que nada seria como antes.
Sua tia Maren tinha vindo dos EUA para ajudar Tyra a passar por tudo aquilo, ela não iria ficar, tinha coisas pra fazer, ela convidara Tyra para ir aos EUA com ela, ficar um tempo e se distanciar de tudo aquilo. Mas ela não queria ir, Tyra tinha um emprego, amigos, e havia entrado pra universidade de Belas Artes, ela queria ficar. Na saída do cemitério duas de suas amigas se despediram e disseram que passariam na casa dela mais tarde pra ver como ela estava, sua tia disse:
– Já fazem quase dois dias que tudo que você faz é chorar e dormir – disse Maren – talvez você e suas amigas pudessem sair, espairecer, vai te fazer bem.
Era a primeira coisa útil que a tia falava desde que tinha chegado, ela precisava de uma bebida e de ver pessoas. "É, parece uma boa ideia", disse sem muita convicção, Martha e Chirstine combinaram de pegá-la mais tarde e assim o fizeram.

Drammen era uma cidade pequena, de quase 70 mil habitantes, mas era também a capital do condado, logo era um lugar muito popular e movimentado. Assim sendo as opções para sair eram diversas, as amigas optaram por um pub discreto nos arredores da cidade, onde podiam conversar sem ter que lidar com ocasionais flertes. Chegaram lá de trolleybus – uma espécie de bonde moderno, um ônibus que usa uma rede elétrica externa como fonte de energia – e sem demora estavam tomando seu primeiro drinque no pub conhecido como "Blå Fugl", ele não tinha realmente um nome escrito, mas um velho grafite de um pássaro azul pintado sobre a porta havia nomeado o lugar antes que e dono pudesse por uma placa de qualquer tipo, assim quando finalmente pode colocar uma placa, ele acabou apenas afixou uma escrito "PUB", como se alguém tivesse qualquer dúvida sobre a finalidade do lugar.
Tyra aparentava estar mais descontraída, mas era apenas fachada, o esforço de suas amigas era sincero e notável, e ela não queria desapontá-las, então decidiu fingir estar melhor, talvez se fingisse com bastante convicção ela realmente ficasse melhor. Em um dado momento Martha e Christine decidem ir ao banheiro, e Tyra pode finalmente voltar a sentir sua tristeza.
– Que tragédia pode ser tão grande a ponto de despedaçar um coração tão grande quanto o seu? – Disse um estranho ao se aproximar da mesa, ele era um jovem de seus 17 anos, rosto de traços sutis e esguios, uma longa franja apenas do lado esquerdo do rosto, dava um ar ridiculamente emo aos seus cabelos negros. Ele também tinha um olhar triste, na verdade comovente, como se pudesse sentir a dor de Tyra.
– Meus pais e meu irmão de 6 anos morreram num acidente de carro, enterrei eles hoje – ela disse quase com raiva – É uma tragédia grande o bastante pra você? Questionou com rispidez, desviando o olhar para a janela ao seu lado, lágrimas desciam sobre seu rosto.
–É, eu suponho que sim – disse o estranho. Ele se senta toca um das mãos de Tyra, o que imediatamente atrai a atenção dela, pois ela esperava que ele tivesse ido embora. – O que você disse? Ela perguntou, desconcertada.
– Eu disse que é uma tragédia grande o bastante sim. Seres humanos são feitos para suportar o sofrimento, nós nos definimos pelos sofrimentos que suportamos, pela dor que ultrapassamos. Esses momentos são obstáculos na nossa existências, desafios a serem vencidos.
Agora ele já segurava as mãos de Tyra entre as suas, e aqueles olhos tristes penetravam fundo em sua alma. Suas mãos eram frias, mas não de uma forma desconfortável, na verdade era um toque quase anestésico. Tyra esboçou um sorriso ao pensar nisso...
Quando Christine e Martha voltaram para mesa viram que Tyra não estava ali, ela estava de pé ao lado da Juckbox terminando de selecionar uma música. Ela estava sozinha e sorrindo, feliz, estranhamente feliz. A música começa a tocar, Beautiful Day do U2, e ela dança, dança sozinha, leve, desinibida, feliz, estranhamente feliz...

Nos dias que seguiram a felicidade de Tyra começou a ficar pior, por mais estranho que isso soe. Não bastasse seu luto ter desaparecido sem explicação, sua atitude estava diferente. Estava radiante a cada dia, sem melancolias, sem preocupações, mesmo quando isso era extremamente necessário. Ela começou a faltar ao trabalho, depois a faltar na faculdade, passando cada vez mais tempo caminhando pelos parques e ruas de Drammen. Pegava coisas e não pagava sem que as pessoas corressem atrás dela e a lembrassem de fazer isso. Pouco a pouco as coisas foram piorando, ela ria loucamente, corria pela cidade semi nua, e as contas acumulavam. Até que finalmente sua tia voltou e a internou em uma casa psiquiátrica.
Os psiquiatras chamaram de euforia crônica, era como um transtorno bipolar, mas sem as fase de depressão. Ninguém sabia explicar o que estava acontecendo, os remédios amenizavam, mas faziam cada vez menos efeito, e ela ficava cada vez mais descontroladamente feliz. Era como se fosse incapaz de ficar triste, de desligar a felicidade, como se alguém tivesse roubado toda sua tristeza. Isso continuou por mais alguns dias, até que ela finalmente entrou num estado catatônico, com um macabro sorriso estampado no rosto, e assim permaneceu até sua morte, alguns dias depois.

As antigas lendas escandinavas contam que o sorgsmord era uma punição aos suicidas. Aqueles que buscavam a morte fora do campo de batalha, os que tinham medo de enfrentar seus inimigos e buscavam o caminho mais fácil para o Valhalla. Estes eram condenados a permanecer eternamente no mundo do qual tentaram fugir, obrigados a se alimentar da tristeza dos outros, eternamente amargurados por todo o sofrimento que roubavam dos vivos.